Os ciclistas que mais admiro não são os que pedalam muitos quilômetros por dia, quilometragem que, no fim do mês, alcança valores astronômicos.
Por estes eu não tenho exatamente admiração, tenho respeito , um respeito, aliás, muito grande.
Não, meus ciclistas heróis são os que não têm carro por opção ou, ato supremo de heroísmo e amor aos seus princípios, venderam-no ou, para marcar ainda mais esta separação, deixaram-no abandonado em algum canto.
A estes eu tenho na conta de iniciados no longo caminho do sacerdócio do pedal.
Deveríamos talvez seguir o seu exemplo, tentando aprender seus ensinamentos e reunir forças para dar este passo essencial, o passo da libertação.
Confesso que até já tentei. Há algum tempo criei coragem e anunciei no jornal a venda de meu carro. Um Fusca 68, meu primeiro carro. Este Fusca ainda pertenceu ao meu pai e pensava em deixá-lo para meu filho.
Em meu desejo de purificação, no entanto, concluí que não podia me apegar a este sentimentalismo. Em nome da nova ordem que devia ser estabelecida e da nova vida que iniciaria, me desfazer deste carro era obrigatório.
Alguma coisa dentro de mim, no entanto, reagiu.
Passei a me sentir um traidor da confiança que durante todos estes anos eu depositara no Fusca e ele depositara em mim. Meu Deus, quantas coisas tínhamos vivido juntos, como poderia abandoná-lo em nome da fé ciclística? Decidi, então, temeroso de que aparecesse algum comprador, deixar de atender o telefone durante uma semana. Isto não impediu, contudo, que depois deste tempo surgisse um interessado.
- É aí que estão vendendo um fusca?
- Não, deve ser engano.
- Que número é aí?
Tive que mentir e dar um outro número.
Como o telefone voltou a tocar, passei mais uma semana sem atender.
Com o tempo voltei a empregá-lo mas nem por isto deixei de ficar com a sensação de que , a qualquer momento, talvez até no meio da noite, alguém poderia ligar:
- É aí que estão vendendo um fusca?
Depois disto decidi conviver com minhas bicicletas e meus carros. Carros, sim, porque acabei comprando outros. Todos antigos porque não procuro neles nada que não seja aquilo que uma bicicleta não pode me proporcionar. Diria, assim, que isto hoje é uma questão resolvida e não me sinto em nenhum momento culpado por não estar sempre encima de uma bicicleta. Talvez por isto, até, sinta tanto prazer quanto subo numa.
(foto Gustavo)